quinta-feira, 23 de julho de 2009

Aos amigos


Música do Post: "What A Wonderful World" - (Bob Thiele e George David Weiss )



Frase do Post: "Quando duas pessoas se encontram há, na verdade, seis pessoas presentes: cada pessoa como se vê a si mesma, cada pessoa como a outra a vê e cada pessoa como realmente é" - (James Joyce)





Como uma leoa abatida por uma tiranossauro rex das mais abrutalhadas que já vi, recolhi-me em minha toca nos últimos dias e, enquanto lambia minhas feridas, tive tempo para espiar o movimento da selva, coisa que não fazia havia tempos, por falta de tempo. Passei a observar de forma mais acurada a tudo e a todos, inclusive a mim mesma. Cada gesto, palavra, atitude. E também a ausência de tudo isso. E quanta barbárie ! E quanta ganância ! E quanta pobreza de espírito ! Tive medo, muito medo, e fiquei apenas olhando... Olhando “com um olhar molhado”.

E então, em que pese coisas que vi e que preferia nunca tê-las sabido, também presenciei, aqui e ali, e de uma forma que não sei se conseguirei descrever à altura, atos que não posso chamar apenas de nobres, porque isso seria muito pouco. E, como boa sobrevivente, preferi me concentrar mais no que me elevava a alma. E é sobre isso que vou contar.
Existe um fenômeno muito interessante que ocorre sempre que se leva uma facada pelas costas ou uma porrada daquelas alucinantes que te deixam tonta, vendo estrelas e o chão abaixo de seus pés se abre para te engolir. Dê a isso o evento que, na sua vida, mais se encaixa neste caso: o fim de um relacionamento, a perda de alguém querido, de um emprego, de um projeto. Uma traição. Uma doença incurável. Qualquer coisa que te faça se recolher, se sentir pequeno e frágil.
Não gosto de fazer marcações muito precisas. O bom e o mau. O fim e o começo. O bem e o mal. O bonito e o feio. Isso é muito simplista e não corresponde de forma alguma à grandeza e complexidade de que são feitos os seres humanos. Igualmente de nada serviriam para fazer marcações na vida. "Hoje foi o fim de tudo", "o ano será bom", "essa religião é do bem", "essa história é feia ".
Eu pergunto:
O fim? Quando começou o fim?
Bom? Bom em quê?
Do bem? Pra quem?
Feia? Que parte?

Ah, a vida não é cartesiana. Se fosse, seríamos todos magros, heterossexuais, católicos (se no Brasil), bem sucedidos, bem casados, comeríamos todas as verduras, não fumaríamos nem beberíamos e todos os intestinos funcionariam como um relógio, o que dispensaria o Activia Plus ou o Almeida Prado 46 e coisas do tipo. Isto porque nossos pais teriam traçado tudo à régua e o resultado, como em toda matemática, seria preciso.
Mas isso não existe, thanks God ! Oh, thanks, thanks God !!!
Eu tenho anemia crônica, meu peso é ridículo, odeio rúcula e, no entanto, não fumo. E daí? Procure aí no gráfico. Em que marcação estou? Não existe.
Tenho amigos profissionalmente bem sucedidos mas... tenha a delicadeza de não lhes perguntar sobre sua vida amorosa, a menos que esteja disposto a ouvir muito choro e ranger de dentes. E casais super felizes e paupérrimos que vão vivendo assim-assim. Um dia tem um quebra pau por causa de mistura mas... eles vão vivendo. E ?
Há em minha família um casal gay cuja relação é a mais estável e madura dentre todas as hetero que conheço. E tenho também amigos um tanto avarentos e cheios de manias mas... ligue para eles chorando às 3h30 da madrugada. Eles param tudo para te dar um colo. Como classificá-los?

Foi então que, observando a selva cheguei à seguinte conclusão: a culpa é de La Fonteine, Walt Disney e toda essa turma envolvida na máfia da carochinha. Da Bíblia é que não pode ser porque nunca li inteira. Vai me dizer que você leu? Mas Walt Disney e La Fonteine com suas fábulas, ah, eles fizeram marcações gravíssimas. Minha filha não pode ouvir a palavra "madrasta". Para ela é sinônimo de má. Se morro, como é que fica? Não posso obrigar meu jovem marido a renunciar aos prazeres mundanos ou a uma possível reconstrução emocional caso eu venha a lhe faltar um dia. Mas Walt Disney foi implacável: as madrastas, todas elas, são más. Ponto. E há os bonzinhos, que são legais e lindos demais; e os maus, que são terríveis e horrorosos. Repare que todos os "meio-termo" nas produções dele são coadjuvantes: empregadas, cocheiros, cozinheiras... Mas a tal da madrasta, não fale dela para Luísa, por favor !
E, como Luísa, nós também temos tido o péssimo hábito de fichar todo mundo. E de forma absoluta: totalmente bom ( e dá-lhe Dalai Lama), totalmente mau (e então mataram Saddam Hussein), totalmente linda ( e La Bündchen ficou milionária), irremediavelmente horrorosa ( ainda bem que Susan Boyle tem voz). E por aí vai.
E se um filho de Deus resolve nos apunhalar, nos dar uma porrada, ai-Jesus-misericórdia que o tal já toma logo o posto de maaaaaaaaaaaau (e a gente fala com a boca bem aberta, “escancarada, cheia de dentes, esperando a moooorte chegar”), biltre, vil, desprezível, infame.
É bem compreensível: somos os mocinhos da nossa história e quem nos ataca, pela lógica, é o vilão.
E então ocorre que pela estrada afora eu ia bem sozinha quando, como já sabem, fui atacada por uma tiranossauro rex. E então tudo escureceu.
Minha vista, meu mundo, meu caminho.
Por uns dias, foi apenas dor
Silêncio
Silêncio
E mais silêncio
E muita, muita dor.
E veio o marido zeloso preparar as comidinhas diletas para afagar meu estômago, que no entanto se fez atipicamente apático.
E veio a filhinha, em sua inocência, para mostrar que o futuro é imperativo.
E veio a família, agoniada, preocupada, assustada, empunhando a bandeira do destino: “minha filha, Deus sabe o que faz”.
Mas vieram, sobretudo,
revoltados,
exaltados,
indignados,
invadindo minha dor,
arrancando meu silêncio,
me expulsando da toca ...
Meus amigos. Ah, sempre eles, meus amigos !
Chegaram com seus colos
Seus remédios morais
Seus braços
E abraços
E vaiaram o Judas. “Essa tiranossauro é uma bruxa !”, “uma estúpida”, “um ser abominável”. E porque meus amigos são todos gente de verdade, sanguíneos, pulsantes, uns porra-louca alucinados de paixão, eles vociferavam, vociferavam entre dentes, esquecendo-se, no entanto, que enquanto conspiravam contra minha vilã passavam, agora eles, assim como eu, a ser os vilões da história dela.
Mas seguiram, amontoados em torno de mim, em minha casa, alimentando meu espírito dolorido com frases de efeito que, confesso, me acalmaram, me vingaram, me recobraram as forças. Mas enquanto falavam, bradavam, gritavam não perceberam o momento em que descobri que, muito além, mas muito além mesmo de toda aquela raiva e indignação, estavam ali corações combalidos, arrebatados de compaixão, desesperados, ansiosos para me ver sorrir, para me ver de pé.
E foi então que eu tive a visão do paraíso. E foi então que corri para o banheiro e gritei bem alto: “Eu tenho amigos. Escute, Universo, eu tenho amigos de verdade ! Que morrem de ódio, de fome, de raiva, de amor. Que são gente de verdade porque os escolho por esse critério. Que têm sangue nas veias, que se enganam, se machucam, e que também ferem os outros, porque não são perfeitos, graças a Deus, e por isso eu os amo demais. Eu os amo de um jeito que não posso descrever.
E aí veio a segunda e mais impressionante constatação. Se tenho os meus amigos, que o são porque se afinam comigo no modo de ser, de agir, de viver, também uma tiranossauro rex deve ter os dela, os que se afinam com ela. Os que também vociferariam por ela. Os que lhe dariam colo. Os que a amam. E isso é perfeito, como toda a natureza, como as flores na primavera, os pássaros, o luar, o pôr do sol. É perfeito como a cadeia alimentar: o predador de um é a presa de outro. Tudo se encaixa e ninguém está só. O mundo, a vida, a existência é algo indizivelmente divino, maravilhoso, belíssimo.
Veja que as cobras, as mais peçonhentas, protegem seus ninhos. E os lobos de Clarice Lispector, embora tenham garras para machucar alguns, se abraçam porque se precisam “tanto, tanto, tanto”.
Com toda certeza, a tiranossauro rex jamais se sentará à minha mesa e é, para mim, uma vilã da pior estirpe.
Mas – e isso me acalma – tenho certeza de que
Para alguém
Ou para muitos
Ela deve ser verdadeira
Doce
Terna
Bondosa
E é nisso que mora a redenção de toda a humanidade.