quarta-feira, 18 de novembro de 2009

Refaça esse lead, Cléo



Música do Post: Não vá ainda (Zélia Duncan)
Frase do Post: "Levanta-te e anda" (Jesus Cristo)


Não vá ainda, rapaz ! Refaça esse lead. Ele é o mais errado que você já ousou escrever. E você, que de tudo parece saber um pouco, agora nem me reconhece. Estou aqui, impotente, da janela do meu apartamento vendo este prédio enorme lá fora, cheio de ambulâncias chegando e saindo, ciente de que você está ali, em alguma sala fria, rodeado de estranhos que se vestem de branco e que, no entanto, te podem salvar a vida.
Não vá ainda, rapaz. Espera o anoitecer da sua vida. E ele haverá de ser muito estrelado. Ainda é dia, dia de sol, de calor. Muita coisa a fazer ainda. Te levanta ! É ordem. Costumavas obedecê-las com uma disciplina irretocável... Ei, o tempo está passando, as pessoas estão vivendo, correndo, com horas marcadas, desmarcando compromissos e criando novos. Pegue teu prumo. Onde estávamos mesmo? Desse jeito você vai chegar atrasado. Para a aula, para o estágio, para me ver e jogar conversa fora. Corrija esse erro. Só pode ser um engano. Esse seu texto está todo errado, não é por aí.
Refaça esse lead, rapaz!
O "quando" não é agora. O "quem" costumava ser mais teimoso, não aceitaria isso assim, sem lutar, esbravejar. Cadê sua fúria? Onde foi parar sua fé? Não é você aí, inerte.
Refaça esse lead.
As informações não batem. Não me deixe nessa, cara. Não você, que tantas vezes me viu chorar, que tantas vezes me mandou reagir. Eu é que desabo, não é você. Não inverta os papéis. Onde está o rapaz cheiroso e cheio de estilo que me ligava e, com uma habilidade fenomenal, nem me deixava falar: "Péra, Patrícia! Fica calada ! Eu preciso falar tudo agora, preciso desabafar agora, senão acabo matando um idiota". Sempre foi assim, não é ? Pois me liga de novo. Me liga e me diga que isto é só um pesadelo. Me liga e me mande esperar enquanto você vomita suas observações impacientes sobre a incompetência e a indolência humanas.
Refaça esse lead, rapaz !
Não vou aceitar esses dados, são incoerentes. Estou editando isso que tenho visto e não quero outra notícia, senão a de que você está bem. A de que você é de novo o Cleomar, alinhado, antenado, informado e metido a besta.
Refaça esse lead antes que eu me desfaça.

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

Antes que seja tarde

Música do Post: Valsa para uma Menininha (Toquinho)
Frase do Post: Não deixe para fazer amanhã o que você pode fazer hoje (desconheço o autor)




Então a catei de impulso e quando dei por mim já estava no elevador, com a pequena olhando para mim, os olhos bem abertos, assustada, vidrada, feliz, confusa. Que fosse pesada, pouco me importou, quis fingir pra mim mesma que ela não estava crescendo tão rápido e perdoar-me por não ter feito isso mais vezes antes. Então, como a um bebê, a acolhi em meus braços e, já no playground do prédio, tratei de empurrá-la no balanço, diverti-la na gangorra, rodar com força o gira-gira, até que ela jogasse para trás a cabeça, com o inconfundível sorriso de dentes muito pequenos, enquanto seus cachos seguiam em rota centrífuga, blindados pelos raios do sol.

Cinco segundos antes do momento em que a catei de impulso, ela – que passara a manhã inteira no apartamento como um mico-leão-dourado preso num jaula me vendo corrigir provas, fazer planejamentos e assistir a séries estúpidas da televisão em pleno sábado ensolarado – havia simplesmente me dito: “um dia você vai sentir saudades de quando eu te pedia para descer pra brincar comigo lá fora, porque um dia vou ser gente grande, vou ter meu carro, salto alto, e vou sair para fazer o que quero, assim como você faz o que quer hoje. Vou tomar gelado, andar a noite sem agasalho e andar descalça. E não vou tomar chá de limão com mel nunca mais !”

Foi Luísa, há duas semanas, com cinco anos, cansada de implorar minha atenção.
Para ela, aquilo foi apenas mais uma chantagem que deu certo.
Para mim, a salvação.

quinta-feira, 23 de julho de 2009

Aos amigos


Música do Post: "What A Wonderful World" - (Bob Thiele e George David Weiss )



Frase do Post: "Quando duas pessoas se encontram há, na verdade, seis pessoas presentes: cada pessoa como se vê a si mesma, cada pessoa como a outra a vê e cada pessoa como realmente é" - (James Joyce)





Como uma leoa abatida por uma tiranossauro rex das mais abrutalhadas que já vi, recolhi-me em minha toca nos últimos dias e, enquanto lambia minhas feridas, tive tempo para espiar o movimento da selva, coisa que não fazia havia tempos, por falta de tempo. Passei a observar de forma mais acurada a tudo e a todos, inclusive a mim mesma. Cada gesto, palavra, atitude. E também a ausência de tudo isso. E quanta barbárie ! E quanta ganância ! E quanta pobreza de espírito ! Tive medo, muito medo, e fiquei apenas olhando... Olhando “com um olhar molhado”.

E então, em que pese coisas que vi e que preferia nunca tê-las sabido, também presenciei, aqui e ali, e de uma forma que não sei se conseguirei descrever à altura, atos que não posso chamar apenas de nobres, porque isso seria muito pouco. E, como boa sobrevivente, preferi me concentrar mais no que me elevava a alma. E é sobre isso que vou contar.
Existe um fenômeno muito interessante que ocorre sempre que se leva uma facada pelas costas ou uma porrada daquelas alucinantes que te deixam tonta, vendo estrelas e o chão abaixo de seus pés se abre para te engolir. Dê a isso o evento que, na sua vida, mais se encaixa neste caso: o fim de um relacionamento, a perda de alguém querido, de um emprego, de um projeto. Uma traição. Uma doença incurável. Qualquer coisa que te faça se recolher, se sentir pequeno e frágil.
Não gosto de fazer marcações muito precisas. O bom e o mau. O fim e o começo. O bem e o mal. O bonito e o feio. Isso é muito simplista e não corresponde de forma alguma à grandeza e complexidade de que são feitos os seres humanos. Igualmente de nada serviriam para fazer marcações na vida. "Hoje foi o fim de tudo", "o ano será bom", "essa religião é do bem", "essa história é feia ".
Eu pergunto:
O fim? Quando começou o fim?
Bom? Bom em quê?
Do bem? Pra quem?
Feia? Que parte?

Ah, a vida não é cartesiana. Se fosse, seríamos todos magros, heterossexuais, católicos (se no Brasil), bem sucedidos, bem casados, comeríamos todas as verduras, não fumaríamos nem beberíamos e todos os intestinos funcionariam como um relógio, o que dispensaria o Activia Plus ou o Almeida Prado 46 e coisas do tipo. Isto porque nossos pais teriam traçado tudo à régua e o resultado, como em toda matemática, seria preciso.
Mas isso não existe, thanks God ! Oh, thanks, thanks God !!!
Eu tenho anemia crônica, meu peso é ridículo, odeio rúcula e, no entanto, não fumo. E daí? Procure aí no gráfico. Em que marcação estou? Não existe.
Tenho amigos profissionalmente bem sucedidos mas... tenha a delicadeza de não lhes perguntar sobre sua vida amorosa, a menos que esteja disposto a ouvir muito choro e ranger de dentes. E casais super felizes e paupérrimos que vão vivendo assim-assim. Um dia tem um quebra pau por causa de mistura mas... eles vão vivendo. E ?
Há em minha família um casal gay cuja relação é a mais estável e madura dentre todas as hetero que conheço. E tenho também amigos um tanto avarentos e cheios de manias mas... ligue para eles chorando às 3h30 da madrugada. Eles param tudo para te dar um colo. Como classificá-los?

Foi então que, observando a selva cheguei à seguinte conclusão: a culpa é de La Fonteine, Walt Disney e toda essa turma envolvida na máfia da carochinha. Da Bíblia é que não pode ser porque nunca li inteira. Vai me dizer que você leu? Mas Walt Disney e La Fonteine com suas fábulas, ah, eles fizeram marcações gravíssimas. Minha filha não pode ouvir a palavra "madrasta". Para ela é sinônimo de má. Se morro, como é que fica? Não posso obrigar meu jovem marido a renunciar aos prazeres mundanos ou a uma possível reconstrução emocional caso eu venha a lhe faltar um dia. Mas Walt Disney foi implacável: as madrastas, todas elas, são más. Ponto. E há os bonzinhos, que são legais e lindos demais; e os maus, que são terríveis e horrorosos. Repare que todos os "meio-termo" nas produções dele são coadjuvantes: empregadas, cocheiros, cozinheiras... Mas a tal da madrasta, não fale dela para Luísa, por favor !
E, como Luísa, nós também temos tido o péssimo hábito de fichar todo mundo. E de forma absoluta: totalmente bom ( e dá-lhe Dalai Lama), totalmente mau (e então mataram Saddam Hussein), totalmente linda ( e La Bündchen ficou milionária), irremediavelmente horrorosa ( ainda bem que Susan Boyle tem voz). E por aí vai.
E se um filho de Deus resolve nos apunhalar, nos dar uma porrada, ai-Jesus-misericórdia que o tal já toma logo o posto de maaaaaaaaaaaau (e a gente fala com a boca bem aberta, “escancarada, cheia de dentes, esperando a moooorte chegar”), biltre, vil, desprezível, infame.
É bem compreensível: somos os mocinhos da nossa história e quem nos ataca, pela lógica, é o vilão.
E então ocorre que pela estrada afora eu ia bem sozinha quando, como já sabem, fui atacada por uma tiranossauro rex. E então tudo escureceu.
Minha vista, meu mundo, meu caminho.
Por uns dias, foi apenas dor
Silêncio
Silêncio
E mais silêncio
E muita, muita dor.
E veio o marido zeloso preparar as comidinhas diletas para afagar meu estômago, que no entanto se fez atipicamente apático.
E veio a filhinha, em sua inocência, para mostrar que o futuro é imperativo.
E veio a família, agoniada, preocupada, assustada, empunhando a bandeira do destino: “minha filha, Deus sabe o que faz”.
Mas vieram, sobretudo,
revoltados,
exaltados,
indignados,
invadindo minha dor,
arrancando meu silêncio,
me expulsando da toca ...
Meus amigos. Ah, sempre eles, meus amigos !
Chegaram com seus colos
Seus remédios morais
Seus braços
E abraços
E vaiaram o Judas. “Essa tiranossauro é uma bruxa !”, “uma estúpida”, “um ser abominável”. E porque meus amigos são todos gente de verdade, sanguíneos, pulsantes, uns porra-louca alucinados de paixão, eles vociferavam, vociferavam entre dentes, esquecendo-se, no entanto, que enquanto conspiravam contra minha vilã passavam, agora eles, assim como eu, a ser os vilões da história dela.
Mas seguiram, amontoados em torno de mim, em minha casa, alimentando meu espírito dolorido com frases de efeito que, confesso, me acalmaram, me vingaram, me recobraram as forças. Mas enquanto falavam, bradavam, gritavam não perceberam o momento em que descobri que, muito além, mas muito além mesmo de toda aquela raiva e indignação, estavam ali corações combalidos, arrebatados de compaixão, desesperados, ansiosos para me ver sorrir, para me ver de pé.
E foi então que eu tive a visão do paraíso. E foi então que corri para o banheiro e gritei bem alto: “Eu tenho amigos. Escute, Universo, eu tenho amigos de verdade ! Que morrem de ódio, de fome, de raiva, de amor. Que são gente de verdade porque os escolho por esse critério. Que têm sangue nas veias, que se enganam, se machucam, e que também ferem os outros, porque não são perfeitos, graças a Deus, e por isso eu os amo demais. Eu os amo de um jeito que não posso descrever.
E aí veio a segunda e mais impressionante constatação. Se tenho os meus amigos, que o são porque se afinam comigo no modo de ser, de agir, de viver, também uma tiranossauro rex deve ter os dela, os que se afinam com ela. Os que também vociferariam por ela. Os que lhe dariam colo. Os que a amam. E isso é perfeito, como toda a natureza, como as flores na primavera, os pássaros, o luar, o pôr do sol. É perfeito como a cadeia alimentar: o predador de um é a presa de outro. Tudo se encaixa e ninguém está só. O mundo, a vida, a existência é algo indizivelmente divino, maravilhoso, belíssimo.
Veja que as cobras, as mais peçonhentas, protegem seus ninhos. E os lobos de Clarice Lispector, embora tenham garras para machucar alguns, se abraçam porque se precisam “tanto, tanto, tanto”.
Com toda certeza, a tiranossauro rex jamais se sentará à minha mesa e é, para mim, uma vilã da pior estirpe.
Mas – e isso me acalma – tenho certeza de que
Para alguém
Ou para muitos
Ela deve ser verdadeira
Doce
Terna
Bondosa
E é nisso que mora a redenção de toda a humanidade.

domingo, 28 de junho de 2009

Charada






Música do Post: Apesar de você (Chico Buarque)


Frase (trecho) do Post: "Preste atenção querida.
Embora saiba que estás resolvida.
Em cada esquina cai um pouco a tua vida.
Em pouco tempo não serás mais o que és.
Ouça-me bem amor
Preste atenção, o mundo é um moinho
Vai triturar teus sonhos tão mesquinhos
Vai reduzir as ilusões à pó.
Preste atenção, querida
De cada amor tu herdarás só o cinismo
Quando notares estás a beira do abismo
Abismo que cavaste com teus pés..."
(Cartola)

Me faltam palavras, por hora
Então tomei de empréstimo as sugestões de um grande e brilhante amigo
Pois, se há algo que não se exonera, é amizade
Neste momento sou uma leoa
abatida por uma tiranossauro rex
Mas em breve volto aqui com meu típico furor.
Aguardem !

terça-feira, 23 de junho de 2009

Oh, querida ! Pra longe de mim...

Música do Post: “Tô fraca, tô fraca, tô fraca, tô fraca” (galinha d'angola – a ave mesmo)

Frase do Post: “Seja quente ou seja frio. Não seja morno, que eu te vomito” (Apocalipse, cap. 3, vers 16)





Oh, como são legais ! Boazinhas, ajustadinhas, falam baixinho, pausadamente, te chamam de “queridinha”, sempre sorrindo daquele jeitinho ensaiado e amarelo. Rã-rã-rã. É assim que elas riem, sem nem prestar atenção ao porquê de estarem rindo. É automático, diplomático. E só. Educadíssimas, parecem ter sido talhadas para a vida social. Ai como são controladas, constipadas, bem apanhadas, com todos os fios do cabelo impecavelmente no lugar ! Eu não. Despenteada, minha raiva é um furor altamente destrutivo. Meu amor machuca suas vítimas. Eu não trabalho, sou um trator. Não durmo, quase levito, quase morro. Não como, devoro. Não tenho medo, mas pavor. Não penso, na verdade conspiro, confabulo, teorizo. Não sei sorrir, dou gargalhadas e faço xixi nas calças. Não testei, mas é bem possível que minha fé remova montanhas. E não, não sou educada. Sou gente. E trato as pessoas como são. Gente.
“Mas as pessoas da sala de jantar estão ocupadas em nascer e morrer”, como diriam os Mutantes. Elas não se permitem isso e se consideram ponderadas, mas prefiro chamá-las de fracas. Fraquíssimas. Precisam da estrutura montada, adequada, apropriada, quadrada, para se sentirem protegidas. Precisam do muro, para ficar em cima dele. Precisam das horas contadas, dos diálogos ensaiados previamente no espelho, devem até marcar a hora de fazer o amor. Seus filhos são planejados, elas tem dinheiro na poupança e previdência privada. Andam por aí com uma sacola de elogios. “Que lindinha sua filha, gordinha né ? Sinal de saúde ! Rã-rã-rã”, “Que escândalo ficou seu cabelo, meio zebra com essas listras louras e castanhas ! Rã-rã-rã”, “Doente? Coitadinha, mas aí você vai poder assistir à Sessão da Tarde, né? Rã-rã-rã”. Ô risinho insuportável !
Valha-me Deus, como são enfadonhas, patéticas, essas gentes ! Andam pela vida como se numa gincana, a segurar pela boca uma colher com uma maçã na ponta. Quem chegará primeiro? E a maçã não cai. E a maçã não cai mesmo, de jeito nenhum, porque essas pessoinhas são jeitosas, cuidadosas, equilibradas. Não como eu, que tomo Rivotril e arrumo minhas almofadas da sala no lugar para, desleixada, não ter de ajeitar o que está desarrumado dentro de mim. É... porque tenho desarranjos mesmo. Sou gente. Tenho angústias, fobias, desespero, cismo com coisas tolas, me engano com pessoas , erro muito, sonho em como vai ser minha vida se ganhar na mega-sena, faço e falo asneiras.
Mas essas pessoas não. Previdentes, desconfiam de tudo e de todos. Não correm riscos. Não tem amigos, porque é caro tê-los. Exige respeito, humanidade, autenticidade e, sobretudo, coragem. E pessoas fracas não sabem o que é isso. Não sabem que força não é não ter medo. Não é ser previdente. Força é assumir posições – e como isso é difícil (!) - e defendê-las se for preciso. Força é, sendo humano, enfrentar o medo; sendo doente, medicar-se; sendo frágil, pedir ajuda; sendo gente, ser gente.
"Ah, não, mas está tudo bem comigo. Meus filhos são os melhores da escola, não sabem o que é cárie nem pneumonia, meu marido é trabalhador e honesto, minha família é uma propaganda de margarina. E meu cabelo é liso de verdade". E quando chegam em casa, arrastando o velho sapato de marca reformado incontáveis vezes, está tudo errado. As almofadas da sala também estão bagunçadas, os filhos são uns pentelhos cheios de manias estranhas, seus maridos já desistiram delas e não há margarina na geladeira, porque engorda. Elas caminham em direção ao banheiro para desfazer a maquiagem mas não se esquecem, contudo, de abrir sua confiável agenda e marcar hora no cabeleireiro para a escova progressiva.
Oh, querida, a vida não é uma gincana. Quanto tempo perdido em mentiras e fantasias quando tudo poderia ser compartilhado ! Experiências, vivências, expectativas ! Você leva a vida de um jeito morno que me embrulha o estômago.
Oh, queridinha, minha filha tem uma letra horrível e toma aerosol desde os 9 meses, eu quase morri de pavor quando ela nasceu porque aquilo tudo era muito difícil pra mim. Nem por isso me sinto menor. Meu marido ronca demais e me chateia muitas vezes. Nem por isso o acho menor. Eu mesma sou uma mulherzinha muito da insuportável que o aporrinha com essas frescuras de esposinha-pequeno-burguesa. Nem por isso somos menores. Estou vivendo de um jeito muito vivo e verdadeiro. O sol continua ardendo, as crianças nascendo, os idosos morrendo, as vacas dão leite e os porcos chafurdam na lama. As pessoas nas ruas fazem planos. Fazem planos deitadas em suas camas enquanto esperam o sono chegar, fazem planos o tempo todo, fazem planos dentro das igrejas e contam para Deus. E todas vão vivendo de um jeito verdadeiro. Pelo menos aquelas com quem gosto de me relacionar.
Aonde você pensa que chegará nessa pose ridícula, segurando uma colher na boca com uma maçã na ponta? Com quem, pensa bem, com quem você está competindo? Não gosto de gincanas. Sempre roubei as maçãs maiores e as mais vermelhas e as comi sem medo de ser pega em flagrante porque assim esse simples pecado se tornava sempre mais prazeiroso...

domingo, 14 de junho de 2009

Meu marido...o rei


Música do Post: "Your Love is King" (Sade)

Frase do Post: "Não conheço ninguém que conseguiu realizar um sonho sem sacrificar feriados e domingos pelo menos uma centena de vezes" (Roberto Shinyashiki)






Quando muito jovem
ele fora o bôbo da Corte
Zombavam dele
porque não tinha moedas de ouro
ou cavalos velozes
E diziam que, com sorte,
seria o açougueiro do povoado.
Ele ria, triste e acabrunhado.
Mais tarde, tornou-se um devasso
Conheceu quase todas as moças do reino
E a quase todas encantou
Com seu charme e seus talentos inenarráveis.
Eram festas e mais festas
Sempre muito concorridas
E ele seguia numa valsa louca e desenfreada
Para desespero da jovem que um dia ele desposaria
E que o amara desde o primeiro instante.
Mas ele seguiu seu curso
Com viagens infindáveis por outras paragens muito longínquas
E conheceu mais de quase tudo
E, quanto mais conhecia,
Mais lia
E quanto mais lia, mais culto ficava
E aqueles que um dia haviam zombado dele
Chocaram-se ao revê-lo tempos depois
Tão seguro de si
Tão forte
Tão sereno
Tão superior.
E especulava-se, à boca pequena, o que houvera, afinal.
Casou-se por vontade própria e muito contente
E uma filha ele teve anos depois
e juntas elas lhe deram um novo sentido à vida
Já não necessitava de tantas festas
e diversões que tais
Para sentir-se bem
Ele queria mais
Muito mais.
Na verdade, ele sempre havia querido mais
Era um velho projeto muito arrojado
com o qual sonhara desde menino
E seu avô
o elegante e sempre impecável patriarca da família
Octávio Pacheco Pompeo de Camargo
chegara a dizer certa vez à mesa
que seu neto nascera para ser um grande
mas não lhe deram ouvidos, talvez
porque ele havia bebido um pouco mais naquele dia
O ancião, contudo, tinha razão
Mas é difícil destruir o monstro que rói nossa auto-estima
Para enfrentá-lo, ele levara anos e anos e anos
E sua companheira sabia, sempre soubera,
Que ele era capaz.
Mas ele não
Por um tempo, ele não soube
Agora, contudo, destruído o monstro,
Ele resolvera preparar-se para a grande viagem
Mas o fato, o grande fato, é que
independente de tudo
Ele era um rei.
Nascera rei.
Já o era bem antes de chegar a seu templo
Seus ancestrais, como é de se ver, sabiam disso
Sua esposa sabia disso
Ele sabia disso
E, por essa razão, pouco importaria
quanto tempo iria durar a caminhada até o templo
Ele já era um rei.
Em seus dizeres
Em seus saberes
Em seus gestos e atitudes
Tudo denunciava sua inata majestade
Os que o amavam não se importavam com o tempo da travessia

Sua esposa teria de ser forte o suficiente para suportar a ausência de seu amor
enquanto ele corria atrás de seu sonho
Não haveria domingos nem feriados naquela corrida
nem mesas fartas
nem honrarias
Mas o tempo e os sacrifícios não importavam
Afinal, é próprio de um rei enfrentar longas e terríveis batalhas
E quem se destina a acompanhá-lo
Deve estar preparado para isso
Ela bem o sabia


segunda-feira, 8 de junho de 2009

Ah, minha mãe, menininha...

Música do Post: Tocando em frente (Almir Sater/Renato Teixeira)
Frase do Post: “Teu colo...teu colo... eternamente, teu colo” (Chico Buarque)




Ela sempre teve aquele jeito desconcertante de enfiar as coisas no peito. Era chave, dinheiro, correspondência, carretel de linha, carnê de pagamento, documento, presilha, o diabo. Cabia tudo, tudinho mesmo. Oito anos de idade, eu ficava me perguntando se aqueles peitos eram, na verdade, um buraco sem fim ou se, pelo contrário, aquilo não se tornava visualmente muito esdrúxulo. Olhava bem de perto, de diferentes ângulos mas... nada. Nada dava a entender que tava tudo ali tão bem guardadinho.
Sempre tão viva e rueira, lá se ía ela pelo bairro – eu na cola – a fazer corriqueiras visitas às vizinhas. E depois do café com prosa, costumávamos dar uma passadinha na mercearia, ela com seus peitos, eu com os olhos vidrados nas balas, chicletes e outras guloseimas sempre tão coloridas e açucaradas. E então se comprava de um tudo, mas nada doce, “que isso dá cárie”. Ia enchendo a cesta com um quilo de carne, bananas, fósforo, café. Na hora de pagar, não havia bolsa, não havia carteira, nem anotações na caderneta. Como quem enfia a mão no bolso, ela tirava o dinheiro lá do meio dos confins daqueles peitos enormes, para onde eram levados também, em seguida, as moedas do troco. Da primeira vez, o dono do mercado, Seu Rubens, levantou suas grossas sombrancelhas por detrás do balcão – não sei se embasbacado ou curioso – mas, diante da naturalidade dela, aquilo com o tempo tornou-se, também para ele, algo tão corriqueiro que, ao informar a soma, já olhava para os tais peitos, pois sabia que era de lá que brotariam seus lucros do momento.



Exímia costureira, não havia um único dia debaixo do sol em que ela e seus olhos azul-turquesa não dessem um pulo na loja da aviamentos para assuntar as novidades. Novas tonalidades das Linhas Corrente Drima (só serviam “as de marca boa”), tira bordada, botão, tule e fivela. Tudo era estudado nos mínimos detalhes, tocado, retocado, conversado, desconversado, mastigado e digerido com a vendedora. Na verdade, a julgar pela vida que levava – única filha sobrevivente de um pai alcoólatra e uma mãe esquizofrênica, parideira de quatro e ávida por novidades mas fadada à vida doméstica - era um jeito de ela ter sobre o quê conversar: panos, tecidos e os impactos que suas cores e brilhos – ou a falta deles – poderiam causar na sociedade. E então chegava a hora, aquela em que eu de mansinho cuidava de me esconder por entre os rolos de sedas, chitas e filós para não ver o que fatalmente aconteceria: feito o veredicto e escolhida a peça, lá ía vagarosa a mão no peito, que voltava com uns trocados para adquirir os botões que, por sua vez, eram cuidadosamente acomodados, com o troco, nos peitos de novo. Tudo misturado
Pior era quando ela tinha de contar as moedas. Ai minha Nossa Senhora da Medalha Milagrosa, que nessa hora eu queria era estar fazendo contas terríveis de matemática, decorando a tabuada ou flexionando verbos no particípio passado. Qualquer coisa para estar longe dali. Ela abaixava a cabeça, ajeitava os óculos, franzia o cenho para olhar com atenção aquela brechinha que forçava com as mãos hábeis entre um peito e outro, por onde então dançavam as moedas, seguras pelo sutiã, permitindo-lhe catar as que fariam a soma exata para o pagamento. Tudo, mas tudo mesmo, sob o olhar incrédulo de vendedores novatos. Por isso eu adorava Seu Rubens. Ele já não se importava mais.
Num dia de rebeldia infantil, lhe pedi balas e ela disse que não havia dinheiro. Ora bolas, impossível um costureira que a toda hora tem de comprar linhas não ter moedas ! Furiosa e no auge da desobediência não fui sorrateira fuçar em gavetas. Não realizei expedições em sua bolsa, sapatos e caixas, tampouco subi em tamboretes para remexer latas velhas escondidas no alto do armário da cozinha. Nada disso. O crime ali tinha de ser cara a cara, peito a peito. Voei sobre os dela em busca das moedas. Não havia nada. Nada nos peitos, mas nos pés umas terríveis havaianas com as quais me ensinou de jeito a não mais desrespeitar-lhe a tal ponto.
Noutra vez, acordei com ela afobada. A casa inteira já houvera sido revirada e nada de achar a chave do barracão dos fundos, onde, além das tralhas de costura, eram guardadas todas as coisas horríveis e indispensáveis da família.


“Quanto mais eu rezo mais assombração me aparece”, bradava ela as havaianas ligeiras já seguramente cansadas de trançar a casa num ziguezague infrutífero atrás da chave. Remela nos olhos, levantei já cabreira e num disparo perguntei: “num estão nos seus peitos?”. A casa parou. Empregada, meus irmãos, lavadeira, a vizinha solidária e mexeriqueira que viera ajudar na caça, todos se entreolharam, pasmos. A dita cuja estava lá. Aliviada e nem um pouco constrangida, minha mãe catou-a de um lance, já saindo agoniada para o quintal, ajeitando o sutiã - “O circo acabou, agora vou ficar aqui nos fundos o resto do dia que tenho de terminar o vestido da Noêmia. Vem pra cá Iolanda. Bora tomar um cafezim enquanto faço uns arremates”, e sentou-se em sua Singer, onde passaria o resto do dia. Tudo sempre terminava assim lá em casa porque, a bem da verdade, minha mãe nunca teve nada de teatro ou mistério. Era a vida como a vida era: o resolvido, resolvido e o que não, fazer o quê? E ela seguia adiante sempre muito forte e confiante em seus sutiãs de alça reforçada.
Com o tempo, e a maturidade, fui percebendo que minha mãe não acomodava apenas pequenos objetos nos peitos. Seu número 50 era suficientemente grande para segurar também dor, angústia e frustrações. As delas e as alheias. E sempre da mesma forma: imperceptivelmente. As lágrimas que eu não via, e a cuja ausência eu creditava minha certeza de sua felicidade de fábula, na verdade se escondiam também em seus peitos. Ficaram lá, guardados, ou melhor, abafados, o sonho não-realizado de ser enfermeira, a perda de três irmãos ainda jovens, as lembranças da cidadezinha pequena, calorenta e melancólica onde nascera e crescera jogando vôlei enquanto meu avô bebia o orçamento da família no bar da esquina, o semblante de minha avó Ana - ou Almerinda, que é como ela garantia se chamar quando eventualmente surtava - a esquizofrênica mais meiga e doce que já pisou sobre a Terra. Estar com ela e suas alucinações fazia a loucura parecer algo muito parecido com estar num filme de Akira Kurosawa com uma pitada positiva de Almodóvar.
E minha mãe levou as tragédias, tristezas e loucuras da família não como quem se curva ao inevitável. Não como uma mártir. Não como quem se sacrifica, mas com um amor devotado e contente. Ela dava banhos em minha avó e se divertia inventando penteados para aqueles cabelinhos branco-algodão. Era fita aqui, presilha ali, baton, brincos, perfumes e tudo o mais que pudesse fazer a velhinha se sentir linda ou mesmo - com sorte - acreditar que era uma estrela da década de 20 em Hollywood. E então minha mãe a colocava na cadeira de rodas e a levava para a porta da rua, onde a avozinha passava o resto do dia sentada, olhando para as pessoas que passavam e eventualmente acenando, como se fosse a rainha da Inglaterra em seu passeio matinal pelo castelo de Buckingham. Minha avó também tinha peitos grandes. Minha mãe herdou os peitos, mas não a loucura. Sempre muito sensata e alerta, acostumou-se a rir de tudo um pouco, a não se preocupar com fofocas de família, nem festas tradicionais, ou o que quer que fosse. Um dia sugeriu, morrendo de rir, que meu pai comprasse pizzas para o Natal. E justificou:"O tal do peru tem gosto ruim, dá trabalho demais e me dá uma canseeeeeeira pensar que o mundo todo tá comendo a mesma coisa". Ela sabia que o irritava nessas horas, e se divertia com isso. Mas tenho certeza: se colasse, ela teria adorado as pizzas, porque seria mais prático e a vida já era complicada demais para ter de seguir convenções que, a seu ver, eram despropositadas. Faz sentido pensando hoje e imaginando que viera de uma família cujo calendário não era uma peça propriamente necessária para a vida.
Aos 20, eu com meus peitos geneticamente grandes, não suportei aquele peso e, debaixo de protestos dela, tirei numa plástica um quilo e meio daquela coisa enorme. Aos 30, não pude amamentar minha filha por causa disso e então vi – flash (!) – naquele tipo de insight que só acontece uma vez na vida – que ser peituda não é para qualquer uma. Não há silicone e não há nem mesmo peito grande natural que engradeçam a alma, que fortaleçam o espírito. Há peitudas despeitadas, e mulheres sem peito muito peitudas. Minha mãe, contudo – e com a licença do amor filial – é uma peituda-peituda, daquelas que olham a vida de frente, com a alça reforçada e as havaianas preparadas para qualquer caminhada. Eu não. Minhas havaianas são do tempo em que a marca virou hit. Meu sutiã é 42 e prefiro os de microfibra que é pra não incomodar, minhas dores eu engulo com água e ansiolíticos e minha filha bebeu Leite NAN. Sem problemas: eu sou assumidamente de granja, mas como qualquer filha de uma caipira que se preze, também dou meus pulos. No pula-pula. Mas pulos, de qualquer forma.

domingo, 31 de maio de 2009

Luísa


Música do Post: Luiza (Tom Jobim)

Frase do Post: "Não sei se o mundo é bão, mas ele ficou melhor, desde que você chegou" (Nando Reis)





Segue abaixo um texto que escrevi quando Luísa, hoje com 5, completou 1 ano:

Peraltíssima, deu agora foi para comer minhocas
Dessas minhoquinhas pretinhas e nojentas que começaram a dar o ar da graça lá em casa.
E também algodão
Não aquele doce, que vem nas cores amarelo, verde, rosa
E que até gente grande gosta.
Mas o branco mesmo, sem açúcar, que a gente usa para
fazer curativos e tirar esmalte de unha.
É desse que ela gosta.
Principalmente daquele que fica na cabecinha do cotonete
Ah, aquele ali é imbatível.
Não há bolacha recheada, suco de fruta nem leitinho morninho que
supere a gostosura que é o algodão da cabecinha do cotonete !
Andou perfilando também por entre outros sabores exóticos, entre os quais se sobressaíram, na avaliação de seu apurado paladar _ como é de se notar _ as pomadas de assadura, sabonetes, borrachas de apagar textos e outras variedades de minhocas
Que essas tem mesmo seu lugar cativo.

Não gostou da primeira vez que a levaram para dar de comer às galinhas.
Chorou.
Deve te-las considerado muito barulhentas, bicudas, sei lá o quê
Mas hoje as adora.
Sobretudo aquelas que estão rodeadas de pintinhos.
Digo para ela todas as vezes: você é o pintinho da mamãe e do papai.
Sente-se poderosa quando, na medida em que avança altiva rumo ao galinheiro devidamente protegida, e _ pasme! _ alta no colo de alguma gente grande, as galinhas vão correndo assustadas, de medo dela.

Também adora o poder de pegar nossos dedos e massacrá-los com seus incríveis oito dentes de leite afiados.
A gente diz Ai! Ai! Ai!, e faz aquela cara de dor, e ela ri, ri, ri
Pega de novo o dedo e haja tempo para brincar...
Cachorros também estão entre suas predileções.
Um especialmente, o Frodo
Ele é todo delicadeza com ela
Mas dela... não se pode dizer o mesmo.
Se aproxima dele _ ele dormindo _ e com sua mãozinha
pequena, gordinha e cheia de covinhas apalpa em cheio o pelo do bicho, finca os dedinhos compridos com aquela ânsia exploradora e puuuuuuuuxa.
Aaaaaiii, penso eu.
O bicho acorda assustado e certamente dolorido, olha indignado _ talvez magoado _ para ela e...
Aí é hora de sumir dali com a danada antes que o estrago seja pior.

Quando o pai chega de madrugada, das viagens, é outra novela.
Acho que ela contratou um anjo do bando dela para lhe avisar quando o pai estiver chegando.
Juro que quase os peguei no pulo em altas negociações: ela oferecendo-lhe quatro suculentas minhocas recheadas de algodão e cobertas com camadas extras de pomada em troca de uma espécie de serviço-despertador para os dias em que o pai chega de viagem.
Quando entrei no quarto, deu apenas para ver uma ínfima parte de uma das asinhas do anjo saindo sorrateiramente pela janela
Mas o fato é que a sapeca acorda exatamente uns 5 minutos antes de o pai chegar,
Chora, faz de conta que quer leite, toma o leite.
Normalmente ela dormiria depois do leitinho.
Mas não.
Fica ali fazendo hora. O olho espichadão como duas bolas de basquete escuras.
Paradinha, quietinha, como quem não quer nada, no silêncio sonolento da madrugada
E finalmente, como que coincidentemente,
ele chega,
arrebentado de cansaço, pensando em um sono tranqüilo sem saber que sua filha tem outros planos.
Deitado na cama 3h30 da manhã depois de um dia inteiro de trabalho e quatro horas modorrentas de estrada, ele tenta dormir.
Ela fica olhando, olhando... bate a mãozinha no chão, tamborilando os dedinhos, daquele jeitinho de quem planeja alguma coisa terrível.
Vai engatinhando até a cama, escala a montanha quadrada, escala o pai e finalmente tem o prazer de enfiar o dedo no nariz dele
No olho
Na orelha
Na boca
Puxa o cabelo
Puxa os pêlos das axilas dele
E nada do pai acordar
Quase desiste enfim quando ele, já acostumado, desiste primeiro
E a pega no colo, levanta e lembra que é hora de dormir
Ela dorme em três minutos, agarrada no pai e cheirando o paninho que é seu companheiro de lua e de sol
Era só saudade mesmo.
Quando leva um tombo não há fada encantada que a faça calar o bico
Chora desesperadamente, radicalmente
Mesmo que o tombo tenha sido algo como cair delicadamente de bumbum no chão
E se estiverem presentes, naquele momento, cinco, dez ou vinte pessoas na platéia
Ela vai querer
Certamente,
Passar em todos os colos
em busca do consolo para o tal tombo.
Abraça um e estende os bracinhos para o próximo, fazendo beicinho e cara de sofrimento
Aí tem de pegar, abraçar, consolar e tudo mais
E assim segue numa ciranda que vai terminar alguns minutos depois
com ela já rindo por algum outro motivo ou entediada de tantos colos
e querendo ir logo para o chão desenvolver outras atividades mais interessantes do que
simplesmente chorar no colo de gigantes babões

Porcaria não é uma palavra plenamente definidora do que representa Luísa
ao final do dia.
Joelhos arranhados, meias pretas de sujeira, pedaços endurecidos de sopa grudados no nariz.
Dentes sujos de restos de capim ou nem-quero-saber- o-quê que ela achou
pelo caminho e enfiou na boca escondido.
Digo escondido porque já percebi que
A peralta já tem plena noção de quando está fazendo o que “não pode”
E então faz rápido,
mas tão rápido
que chego a imaginar que se trata, na verdade, de um encantamento promovido por algum gnomo, fada ou anjo sob a coordenação dela (não queria dizer, para não parecer mãe pretenciosa, mas acho que Luísa era líder de algum partido político lá no céu, antes de descer de mala e cuia pra cá).
Só para dar uma idéia, dia desses
no prazo de cinco minutos ela conseguiu
desligar o telefone
mudar o canal da televisão (detalhe: com o controle remoto)
rasgar três revistas novinhas que haviam acabado de chegar
derrubar o restos de sua papinha e esparramá-la no chão e,
de quebra,
amassar e comer parte da prova de um aluno meu que havia tirado 1,5 ponto.
Quando me dei conta do vendaval e a procurei
Lá estava ela sentadinha candidamente no cantinho da sala
Olhando para mim com aquela cara de bebê comportado
Lindamente mastigando uma minhoca
Esta é Luísa
Quase um metro e dez quilos mais setecentas gramas de pura ternura e gênio forte
Cabelos cacheados, branquelinha, jeitinho de anjo barroco
Destesta gente barulhenta
Adora os engraçados que falam manso e baixinho e fazem caretas
Apaixonada por Mozart, que escuta desde
seu terceiro dia de vida
dedinhos delicados e habilidosos que nos fazem
imaginar seu potencial para as artes plásticas
perninhas grossas que adora ver por entre nossos dentes grandes
Escrevo tudo isso como um exercício auxiliar para a minha memória
Para os dias em que ela não for mais esta criancinha
Hoje, quando ela completa seu primeiro ano de vida
Fico me lembrando de quando nasceu
Quando duvidei da minha capacidade de cuidar daquele ser
tão pequenininho quanto um ratinho desamparado
Quando tive medo e me desesperei com a quantidade absurda
de vezes em que ela acordava de noite para mamar ou com cólicas
Mal sabia eu que quem estava cuidando de mim era ela. Sem dúvidas, ela.

sábado, 30 de maio de 2009

Pra começar...

















Música do Post: Paciência (Lenine)

Frase do Post: "E o pulso ainda pulsa..." (Titãs)





_ Vamos ver se entendi – me disse ela muito calmamente postada atrás da mesa do consultório, em seu jaleco branco de susto, lendo anotações que acabara de fazer. Você tem 35 anos – continuou – um marido que mora em Brasília se preparando para o Itamaraty e uma filha de 5 anos. Trabalha nos três turnos para o TJ e a UCG, cuida das tarefas escolares da pequena e de tudo o mais que se refere a ela como, por exemplo, a logística relacionada à responsabilidade de levá-la e buscá-la da escola, balé, natação e – puxou fôlego - administra as tarefas domésticas com a empregada pelo telefone e também as contas das duas casas, a de Brasília e a de Goiânia, e está, “sem saber porquê” sentindo palpitações, tonturas, cansaço, memória fraca, irritabilidade aguda a sons e uma ansiedade incontrolável. É isso?

_ Isso

É, pensei, positivo. Luísa, marido, Brasília, TJ, UCG, blá, blá, é mais ou menos isso mesmo. Confere. Não estava muito afim de pensar. Do pouco que entendi, tava certo.

_ Deve ser mesmo insuportável para você ter de pedir ajuda aos parentes ou amigos para, eventualmente, buscar ou levar sua filha para as atividades porque é você quem deveria fazer isso, não é ? – perscrutou a jovem doutora com um sorrisinho indecifrável.

_ Isso

Mas que perguntinha estúpida ! É claro que tem de ser eu, pensei. Eu a fiz. “Quem pariu o Mateus que o embale”, sempre disse meu sábio amigo Luiz Otávio. E eu ali naquele consultório minúsculo, de cabeça baixa, balançando freneticamente as pernas e pensando muito rápido, muito rápido mesmo sobre a possibilidade de estar sofrendo uma síncope ou morrendo, sei lá, mas ao mesmo tempo de saco cheio daquela perguntação toda. Ora bolas, era tudo muito óbvio. O trabalho, o marido, a filha, as obrigações afetas a tudo isso. Eu já tinha falado de tudo. O que mais aquela mulherzinha de jaleco queria arrancar de mim ?

_ É, querida – ela já havia aferido minha pressão arterial, auscultado meu coração e estava tudo bem – você assistia aos filmes da Mulher-Maravilha? Aquela fortona, que dava conta de tudo, acudia os pobres e oprimidos e encarava todas? Você viu qual o final da série de filmes dela?


Ah, não. Ela só podia estar de brincadeira. Mulher-Maravilha? Eu matei serviço, saí de casa, enfrentei o desastroso trânsito goianiense debaixo de um calor infernal, briguei com meu marido durante o trajeto por causa da calma (ou seria responsabilidade?) com que ele dirige, paguei a consulta para ouvir falar de Mulher-Maravilha?


_ Minha querida – e me tascou dois atestados médicos de nada menos que sete dias, evidentemente um para o TJ e outro para a UCG – o final da Mulher-Maravilha é uma caixa de Rivotril, esse aí, que você toma há mais de 10 anos, como já me disse. O diagnóstico é estafa em alto grau. Repouso absoluto esta semana, ok? Arranje um tempinho para cuidar de você mesma e tente fazer uma terapia, tá, porque acho que isso é comportamental. Chame o próximo, por favor.

Isso foi semana passada, 25 de maio de 2009, 14h33 (está no atestado), consultório 4 do Pronto-Socorro da Unimed, Goiânia. Naquela manhã, eu fazia parte da banca examinadora de um anteprojeto de monografia do curso de jornalismo da UCG, quando uma tontura incontrolável me assaltou durante a apresentação de um aluno. Fui escoltada para casa e, de lá, meu marido achou prudente me levar para o pronto-socorro, considerando que os episódios de tonturas vinham se repetindo na última semana.

Ok, admito. Eu centralizo tudo. Ninguém cuida da Luísa como eu. Nem do Júnior, que é a propósito o meu marido. E as coisas têm de estar no lugar. As almofadas da sala, ai que agonia, eu não posso dormir sem antes colocá-las do jei-ti-nho que elas têm de ficar. Arrumadinhas. Todas as noites eu verifico umas duas ou, vá lá, seis vezes se as portas do apartamento estão trancadas, se os telefones estão funcionando (vai que um morre e não conseguem me avisar), se o despertador está mesmo agendado (vai que eu perco a hora), se Luísa está respirando, se as tarefas do dia seguinte já estão todas agendadas corretamente. Eu preciso, urgentemente, saber se está tudo sob controle. Sob o meu controle.


Deve ser por isso que não deu certo a época em que tentei outros ‘medicamentos’ mais, digamos, naturais. Oh, não. Não pense que era Erva de São João. Era outra erva mas ela me deixava meio... des-con-tro-la-da. Então optei por Rivotril. Tomo 4 mg por dia com Lexapro 10 mg (para crises de ansiedade). Se não tem água por perto, vai sem mesmo. E tenho também Rivotril sublingual de 0,25 mg, para situações mais graves. Fico controlada, seguro o rojão e, claro, engordo. Mas nada disso adiantou semana passada. Nada.
Meu corpo estava exausto, minha mente já não mais coordenava coisa com coisa, eu estava mesmo em frangalhos. A doutora pensou em me aplicar ali mesmo, no pronto-socorro, um diazepam na veia que era para já sair dormindo. Eu não quis.

_ Mas porquê? – me perguntou.


Eu tinha dois bons motivos. O primeiro é que não adiantaria nada. Diazepam, para uma toxicômana legalizada com eu, faria o efeito de água com açúcar. O segundo, e que realmente me aterrorizou, é que, bom, digamos que tenho medo de morrer como Heath Ledger.

_ Heath o quê? – ela me interpelou.





_ Led-ger, o talentosíssimo (oh, que pena!), sexy (ai, que desperdício !) e lindo (ai, que angústia !) ator australiano que morreu no início de 2008 por overdose acidental de remédios. Não posso misturar tudo isso. Vai que eu morro. E, se morro, minha filha só vai herdar dívidas, livros e alguns eletrodomésticos. Já tomo Rivotril e Lexapro. Vamos deixar de lado esse diazepam, que é mais ou menos a mesma coisa (pois já li todas as bulas de todos os remédios que usei, e foram muitos, principalmente naquela parte de “inteirações medicamentosas”, pois, em geral, não confio em médicos, mas em mim).

E foi assim. Eu preciso mesmo fazer uma terapia e, saindo do pronto-socorro já fui logo me afobando porque, ora bolas, à meia-noite? Alguém aí atende à meia-noite? Sim, porque, é só por aí que termino minhas atividades do dia e, detalhe, o consultório precisa ter alguém para ficar com a Luísa enquanto faço a consulta que, por sinal, tem de ter um preço meio simbólico. Foi aí que me lembrei de ter ouvido n’algum momento que essa onda de blogs funciona meio como terapia. Então, taí. Acabo de montar meu divã virtual.