segunda-feira, 8 de junho de 2009

Ah, minha mãe, menininha...

Música do Post: Tocando em frente (Almir Sater/Renato Teixeira)
Frase do Post: “Teu colo...teu colo... eternamente, teu colo” (Chico Buarque)




Ela sempre teve aquele jeito desconcertante de enfiar as coisas no peito. Era chave, dinheiro, correspondência, carretel de linha, carnê de pagamento, documento, presilha, o diabo. Cabia tudo, tudinho mesmo. Oito anos de idade, eu ficava me perguntando se aqueles peitos eram, na verdade, um buraco sem fim ou se, pelo contrário, aquilo não se tornava visualmente muito esdrúxulo. Olhava bem de perto, de diferentes ângulos mas... nada. Nada dava a entender que tava tudo ali tão bem guardadinho.
Sempre tão viva e rueira, lá se ía ela pelo bairro – eu na cola – a fazer corriqueiras visitas às vizinhas. E depois do café com prosa, costumávamos dar uma passadinha na mercearia, ela com seus peitos, eu com os olhos vidrados nas balas, chicletes e outras guloseimas sempre tão coloridas e açucaradas. E então se comprava de um tudo, mas nada doce, “que isso dá cárie”. Ia enchendo a cesta com um quilo de carne, bananas, fósforo, café. Na hora de pagar, não havia bolsa, não havia carteira, nem anotações na caderneta. Como quem enfia a mão no bolso, ela tirava o dinheiro lá do meio dos confins daqueles peitos enormes, para onde eram levados também, em seguida, as moedas do troco. Da primeira vez, o dono do mercado, Seu Rubens, levantou suas grossas sombrancelhas por detrás do balcão – não sei se embasbacado ou curioso – mas, diante da naturalidade dela, aquilo com o tempo tornou-se, também para ele, algo tão corriqueiro que, ao informar a soma, já olhava para os tais peitos, pois sabia que era de lá que brotariam seus lucros do momento.



Exímia costureira, não havia um único dia debaixo do sol em que ela e seus olhos azul-turquesa não dessem um pulo na loja da aviamentos para assuntar as novidades. Novas tonalidades das Linhas Corrente Drima (só serviam “as de marca boa”), tira bordada, botão, tule e fivela. Tudo era estudado nos mínimos detalhes, tocado, retocado, conversado, desconversado, mastigado e digerido com a vendedora. Na verdade, a julgar pela vida que levava – única filha sobrevivente de um pai alcoólatra e uma mãe esquizofrênica, parideira de quatro e ávida por novidades mas fadada à vida doméstica - era um jeito de ela ter sobre o quê conversar: panos, tecidos e os impactos que suas cores e brilhos – ou a falta deles – poderiam causar na sociedade. E então chegava a hora, aquela em que eu de mansinho cuidava de me esconder por entre os rolos de sedas, chitas e filós para não ver o que fatalmente aconteceria: feito o veredicto e escolhida a peça, lá ía vagarosa a mão no peito, que voltava com uns trocados para adquirir os botões que, por sua vez, eram cuidadosamente acomodados, com o troco, nos peitos de novo. Tudo misturado
Pior era quando ela tinha de contar as moedas. Ai minha Nossa Senhora da Medalha Milagrosa, que nessa hora eu queria era estar fazendo contas terríveis de matemática, decorando a tabuada ou flexionando verbos no particípio passado. Qualquer coisa para estar longe dali. Ela abaixava a cabeça, ajeitava os óculos, franzia o cenho para olhar com atenção aquela brechinha que forçava com as mãos hábeis entre um peito e outro, por onde então dançavam as moedas, seguras pelo sutiã, permitindo-lhe catar as que fariam a soma exata para o pagamento. Tudo, mas tudo mesmo, sob o olhar incrédulo de vendedores novatos. Por isso eu adorava Seu Rubens. Ele já não se importava mais.
Num dia de rebeldia infantil, lhe pedi balas e ela disse que não havia dinheiro. Ora bolas, impossível um costureira que a toda hora tem de comprar linhas não ter moedas ! Furiosa e no auge da desobediência não fui sorrateira fuçar em gavetas. Não realizei expedições em sua bolsa, sapatos e caixas, tampouco subi em tamboretes para remexer latas velhas escondidas no alto do armário da cozinha. Nada disso. O crime ali tinha de ser cara a cara, peito a peito. Voei sobre os dela em busca das moedas. Não havia nada. Nada nos peitos, mas nos pés umas terríveis havaianas com as quais me ensinou de jeito a não mais desrespeitar-lhe a tal ponto.
Noutra vez, acordei com ela afobada. A casa inteira já houvera sido revirada e nada de achar a chave do barracão dos fundos, onde, além das tralhas de costura, eram guardadas todas as coisas horríveis e indispensáveis da família.


“Quanto mais eu rezo mais assombração me aparece”, bradava ela as havaianas ligeiras já seguramente cansadas de trançar a casa num ziguezague infrutífero atrás da chave. Remela nos olhos, levantei já cabreira e num disparo perguntei: “num estão nos seus peitos?”. A casa parou. Empregada, meus irmãos, lavadeira, a vizinha solidária e mexeriqueira que viera ajudar na caça, todos se entreolharam, pasmos. A dita cuja estava lá. Aliviada e nem um pouco constrangida, minha mãe catou-a de um lance, já saindo agoniada para o quintal, ajeitando o sutiã - “O circo acabou, agora vou ficar aqui nos fundos o resto do dia que tenho de terminar o vestido da Noêmia. Vem pra cá Iolanda. Bora tomar um cafezim enquanto faço uns arremates”, e sentou-se em sua Singer, onde passaria o resto do dia. Tudo sempre terminava assim lá em casa porque, a bem da verdade, minha mãe nunca teve nada de teatro ou mistério. Era a vida como a vida era: o resolvido, resolvido e o que não, fazer o quê? E ela seguia adiante sempre muito forte e confiante em seus sutiãs de alça reforçada.
Com o tempo, e a maturidade, fui percebendo que minha mãe não acomodava apenas pequenos objetos nos peitos. Seu número 50 era suficientemente grande para segurar também dor, angústia e frustrações. As delas e as alheias. E sempre da mesma forma: imperceptivelmente. As lágrimas que eu não via, e a cuja ausência eu creditava minha certeza de sua felicidade de fábula, na verdade se escondiam também em seus peitos. Ficaram lá, guardados, ou melhor, abafados, o sonho não-realizado de ser enfermeira, a perda de três irmãos ainda jovens, as lembranças da cidadezinha pequena, calorenta e melancólica onde nascera e crescera jogando vôlei enquanto meu avô bebia o orçamento da família no bar da esquina, o semblante de minha avó Ana - ou Almerinda, que é como ela garantia se chamar quando eventualmente surtava - a esquizofrênica mais meiga e doce que já pisou sobre a Terra. Estar com ela e suas alucinações fazia a loucura parecer algo muito parecido com estar num filme de Akira Kurosawa com uma pitada positiva de Almodóvar.
E minha mãe levou as tragédias, tristezas e loucuras da família não como quem se curva ao inevitável. Não como uma mártir. Não como quem se sacrifica, mas com um amor devotado e contente. Ela dava banhos em minha avó e se divertia inventando penteados para aqueles cabelinhos branco-algodão. Era fita aqui, presilha ali, baton, brincos, perfumes e tudo o mais que pudesse fazer a velhinha se sentir linda ou mesmo - com sorte - acreditar que era uma estrela da década de 20 em Hollywood. E então minha mãe a colocava na cadeira de rodas e a levava para a porta da rua, onde a avozinha passava o resto do dia sentada, olhando para as pessoas que passavam e eventualmente acenando, como se fosse a rainha da Inglaterra em seu passeio matinal pelo castelo de Buckingham. Minha avó também tinha peitos grandes. Minha mãe herdou os peitos, mas não a loucura. Sempre muito sensata e alerta, acostumou-se a rir de tudo um pouco, a não se preocupar com fofocas de família, nem festas tradicionais, ou o que quer que fosse. Um dia sugeriu, morrendo de rir, que meu pai comprasse pizzas para o Natal. E justificou:"O tal do peru tem gosto ruim, dá trabalho demais e me dá uma canseeeeeeira pensar que o mundo todo tá comendo a mesma coisa". Ela sabia que o irritava nessas horas, e se divertia com isso. Mas tenho certeza: se colasse, ela teria adorado as pizzas, porque seria mais prático e a vida já era complicada demais para ter de seguir convenções que, a seu ver, eram despropositadas. Faz sentido pensando hoje e imaginando que viera de uma família cujo calendário não era uma peça propriamente necessária para a vida.
Aos 20, eu com meus peitos geneticamente grandes, não suportei aquele peso e, debaixo de protestos dela, tirei numa plástica um quilo e meio daquela coisa enorme. Aos 30, não pude amamentar minha filha por causa disso e então vi – flash (!) – naquele tipo de insight que só acontece uma vez na vida – que ser peituda não é para qualquer uma. Não há silicone e não há nem mesmo peito grande natural que engradeçam a alma, que fortaleçam o espírito. Há peitudas despeitadas, e mulheres sem peito muito peitudas. Minha mãe, contudo – e com a licença do amor filial – é uma peituda-peituda, daquelas que olham a vida de frente, com a alça reforçada e as havaianas preparadas para qualquer caminhada. Eu não. Minhas havaianas são do tempo em que a marca virou hit. Meu sutiã é 42 e prefiro os de microfibra que é pra não incomodar, minhas dores eu engulo com água e ansiolíticos e minha filha bebeu Leite NAN. Sem problemas: eu sou assumidamente de granja, mas como qualquer filha de uma caipira que se preze, também dou meus pulos. No pula-pula. Mas pulos, de qualquer forma.

9 comentários:

  1. Agora que cheguei por aqui vi que demorei mesmo... que bom ler você, moça!

    Sabe que no sábado, num grupo de amigos, eu lembrava justamente que minha mãe sempre teve o hábito de guardar coisas nos seios? Lembro sempre da chave. E eu sempre perguntava se não machucava...

    Mãe é tudo! E quando a gente vê que a gente herdou muito mais que o DNA...

    Vou estar sempre por aqui...

    Bjo!

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  2. Hummm... Paty, vc tá mais pra uma peituda disfarçada.
    Ah... estou começando a gostar das segundas...
    Bjos

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  3. A mãe que eu vejo na escola é muito peituda para dar conta do leva-e-traz, dos obstáculos da pequena, de segurar mãos geladas em véspera de apresentação. Aliás, peituda o suficiente para escrever este texto, para dizer o que guarda em seu próprio peito, para dividir conosco as suas raízes. Bjos!

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  4. Existem mais coisas entre o seio direito e o seio esquerdo de uma mulher do que sonha nossa vã filosofia...
    Beijos de uma despeitada...

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  5. Minha flor, você não dá pulos: dá saltos. Saltos ornamentais! E, reamente, peito não é para quem quer. É para quem pode. E como você pode! Pode por mérito e por herança, afinal, filha de peituda, peitudinha é! Beijos
    Fabrícia

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  6. Muito, muito lindo, amiga!Fui lendo e viajando nas palavras, na sua forma única de contar histórias tão lindas e agora compartilhadas aqui!!Foi o mesmo que ver cada gesto da Dona Clóris, com aquele jeitinho maroto dela!!Aliás, você tem mesmo de onde puxar tanta força, tanta bravura e tanto amor! Grande peito que além da família, sempre tem um lugar reservado pras amigas malucas, ehehe!!!Beijão, querida!!!!

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  7. Magnifico! Amo ler os seus textos....Obrigada, Pat! Menina, sabe que essa coisa de dinheiro nos peitos e mesmo mania de latina? Outro dia deixei um bartender de queixo caido quando tirei os dolares do peito para pagar uma rodada de cerveja. Concordo com sua mae. Nao ha lugar mais pratico e seguro para guardar as verdinhas. Principalmente no meu caso: depois de ter consumido umas geladas. Adorei! Beijos em toda a familia.

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  8. Desde a apresentação pessoal ao rodapé das postagens, seus textos "amarram" a gente, Patrícia. Quão honroso pra uma mãe deve ser ler sua história de vida narrada pela filha assim, com tanta ternura e poesia. Ver o amargor das coisas se tornar um texto tão lindo, mesmo que breve - diante de tantas circunstâncias dolorosas da vida - deve ser um dos grandes arremates da vida. Seguirei o blog desde já. Beijos, prima.

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  9. Sou a Marly Paiva e só hoje, amiga li seu ótimo texto sobre sua mãe. Leitura deliciosa! Fica evidente que ela era uma mulher admirável. Continue suas histórias e terá um livro bem interessante.

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